DAS MALDIÇÕES DO ANO VELHO ou, da necessidade de homens e mulheres de bem

do Ms. J. Pietro B. Nardella-Dellova, darsham

Mene, Mene, Tekel, Upharsim.
Daniyel 5:25-28

Ecco! Festa de final de ano “novamente” (apesar do reconhecidamente falso calendário pagão-gregoriano). E como sempre, esperam –vestidos de branco- que das encruzilhadas, dos terreiros, das igrejas, dos templos, das lentilhas, do peru, das ondas do mar, das ceias, das lojas, do vazio, do prefeito, do governador, do presidente da república, dos fogos de artifício, possam receber algo novo, como, por exemplo, a felicidade ou a realização pessoal.

De qualquer maneira alguma virtude (bem pouca) se encontra nestes dias, afinal, as pessoas se revêem depois de 12 meses, abraçam pessoas a quem não abraçavam há 12 meses, desejam felicidades a quem tornam infelizes durante 12 meses, brindam com quem não puderam tomar um café durante 12 meses e, finalmente, até sorriem um pouco –ainda que por força de um espumante sulfuroso do que restou das cestas de natal!

Ah, tudo é novo! É novo podermos lançar para o ano novo as eternas expectativas, enterrando as frustrações e desesperos na farofa e nas cebolas do peru feito bode expiatório, bem como, encobrir as intrigas, corrupção e maledicências (lashon hará), no barulho dos fogos artificiais!

É o ano velho que passa. Vade retro Satana! Ufa, que alívio!

A derrota moral da ONU. Saddam engaiolado feito cão. Centenas de afegãos presos em Guantânamo. Gaddafi empunhando bandeirinha branca. 80% dos cursos universitários reprovados pelo MEC. Galeria Pajé, em São Paulo, vigiada. Os radicais expulsos do PT (e agora o PT evergonhado). A troca de cabeleireiros do PSDB. 0,01% de crescimento na atividade industrial. As lágrimas incontidas do presidente. Trabalho escravo no sítio do Ministro do STF. Também, escravidão na fazenda de um deputado pefelista. Berlusconi salvando a Parmalat e a si mesmo. Alguns juízes federais e dezenas de policiais federais presos. Um Ministro do STJ com sua mancomunada esposa juíza afastados. E o Congresso em CPI/eleição de guerra impensável!

À propósito, há uma semana participei de uma formatura de estudantes de Direito, assentado à mesa entre ilustres juristas e um, creio, Juiz de Tribunal. Por desgraça, foi-me dada a palavra, à qual dediquei o tempo exato de 5 minutos. Falei da necessidade de buscarmos um pão justo, de valorizarmos os estudos do Direito e de lutarmos contra a corrupção em todos os níveis e postos, inclusive no Judiciário. Após a solenidade, no momento dos cumprimentos, esse, creio, juiz, com uma voz triste, grave e decidida, disse-me: Dr., apenas uma crítica para o seu discurso: a corrupção não atingiu o Judiciário! E eu, olhando nos seus olhos tristes, graves e desesperados, respondi: é mesmo?! E pensei, perplexo: afinal, nos últimos meses por onde andou esse homem mal informado?

É o ano novo que chega. Salve! Que alegria!

Postas as barbas de Saddam (e a credibilidade da ONU) de molho, resta saber onde estão as armas químicas, biológicas e de destruição em massa em solo iraquiano? Onde estão os advogados dos afegãos presos e isolados em Guantânamo? O que significam a Líbia, a Síria, a Coréia do Norte e o Irã para o mundo? O que se farão dos 80% dos alunos formados nos cursos universitários reprovados pelo MEC? O que tem a ver a Galeria Pajé com o tráfico internacional de armas e drogas? O que querem os radicais do PT, a bancada ruralista, agora? Até quando o PSDB será um partido pó-de-arroz?

Como se traduz em pessoas e famílias com nomes, o crescimento deficitário? Quando cessarão as lágrimas do presidente e quando começará a construção do Brasil? O que é trabalho escravo nas terras de autoridades judiciárias e parlamentares? O que são, e por que são, 10 bi de euros de rombo na Parmalat? O que faremos com a corrupção nas esferas do Judiciário, Congresso e Executivo?

Depois de tantos policiais acusados ou presos por envolvimento com o crime organizado e/ou desorganizado, o que será feito com o efetivo restante? Quando o Congresso vai se reerguer da festa demo-crática das últimas CPIs e das convocações extraordinárias (ordinárias!) cujo custo milionário demonstra o caráter dos membros do Congresso? Onde está o promotor que matou sua esposa grávida?

Caspita!!! Deveria ser proibido, por decreto, comemorar o Ano Novo. (Natal? Nem Pensar!!!) Ao menos não poderiam comemorá-lo quem não prestasse conta do ano velho.

Mais ou menos assim…lá pelo final de novembro, começando dezembro, todas as pessoas deveriam ser inquiridas com veemência, por exemplo:

-Ei você, homem, o que fez este ano para que sua mulher se sentisse humana, fisica e socialmente satisfeita? O que fez para que ela não substituísse a vida pelas novelas ou por alguma igreja ou campanhas intermináveis de oração e jejum?

-Ei você, mulher, o que fez este ano para que seu homem se sentisse humana, fisica e socialmente satisfeito? O que fez para que ele não trocasse a vida pelo boteco ou por algum time de futebol?

-Ei você, pai ou mãe, quantas vezes levou seus filhos à escola sem xingar nos semáforos ou amaldiçoar os lentos à sua frente, sem demonstrar irritação com a fila dupla na frente da escola e gritar com o porteiro ou simplesmente sem mostrar o dedo médio? Quantas vezes demonstrou aos seus filhos que compensa a vida, que há coloridos e graça em todos os cantos, que há música no ar, que D’us é singularmente único? Quantas vezes demonstrou “concretamente” para eles que não precisarão trocar a casa, o aconchego dos seus braços por traficantes nem precisarão disputar ou provar coisa alguma na existência? Ei… pai ou mãe, quantas vezes calou o discurso e demonstrou em cada ato que a vida não é feita de palavras, mas de atitudes?

-Ei você, comerciante, quantas vezes manteve o preço dos produtos dentro da realidade e sua qualidade dentro do desejável? Quantas vezes não enganou seus clientes? Quantas vezes os viu e os recebeu como pessoas e não como “coisas”? Quantas vezes teve alguma consideração pelas mulheres e pelos homens que adentraram em seus estabelecimentos?

-Ei você, bancário, quantas vezes esclareceu ao transeunte da sua agência do imbróglio que estava contratando? Quantas vezes explicou, detalhadamente, o destino dos rendimentos de seus correntistas e de como, do dia para a noite, podem ter suas vidas perturbadas e destruídas “emocionalmente” pela cumulação de juros sobre juros? Quantas vezes aconselhou seu cliente a não abrir uma conta em sua agência por ser ela desonesta?

-Ei você, aluno, quantas vezes realmente estudou este ano para apreender e quantas vezes não colou em avaliação? Quantas vezes ousou estabelecer uma relação entre o que aprende e o que vive? Quantas vezes freqüentou a biblioteca antes de perturbar seu professor acerca das baixas notas? quantas vezes deixou de “falar mal do professor” em épocas de publicação de resultados, assumindo para si mesmo o resultado obtido como conseqüência lógica da sua medíocre performance discente? Quantas vezes confessou em público, preferencialmente, diante de sua classe, que é um estúpido inconseqüente, que odeia ler, que odeia folhear livros, que não sabe o que está fazendo ali? Quantas vezes confessou que apresentou a pesquisa requerida pelo seu professor, totalmente colada das páginas Internet, que dividiu o tempo entre sites de algum conteúdo com outros de fedorenta pornografia?

-Ei você, professor, quantas vezes se importou, realmente, com o aprendizado do seu aluno? Quantas vezes cumpriu seu horário, público ou privado, para se dedicar à pessoa que se apresenta como aluno? Quantas vezes orientou mais que criticou? Quantas vezes dedicou o horário do café para algum debate acadêmico mais que fofoca e “lashom hará” contra seus coordenadores, diretores ou mantenedores? Quantas vezes, realmente, preparou aulas, debruçou-se sobre os livros, importou-se apenas com sua atividade? Quantas vezes perguntou-se, sinceramente: nasci para ser professor, enganador ou estelionatário?

-Ei você, político, quantas vezes foi honesto este ano, ao menos com seu eleitor? Quantas vezes apresentou algum projeto ou alguma idéia digna de um homem público? Quantas vezes se importou, realmente, com o Projeto de um País, de um Estado ou de um Município? Quantas vezes votou algum projeto por ter certeza que era bom para seu povo e não para seu bolso? Quantas vezes perguntou-se se tinha ou não inteligência, bondade, sabedoria, conhecimento, para ser político? Quantas vezes questionou sua competência e ética este ano?

-Ei você, policial, quantas vezes aceitou presentes e favores de criminosos? Quantas vezes emprestou sua farda ou suas credenciais para delinqüentes poderem roubar e matar? Quantas vezes ficou sentado em algum canto, escondido do mundo, enquanto perto, bem perto de você, algum inocente estava morrendo nas mãos de bandidos? Quantas vezes perguntou-se se era digno deste “título” “policial”. Quantas vezes superou sua ignorância umbilical para entender que faz para da “Secretaria de Segurança Pública”?

-Ei você, advogado, quantas vezes explicou ao seu cliente que “ele não tinha aquele direito” que estava pleiteando? Quantas vezes cobrou o que era sensato e justo como honorários advocatícios? Quantas vezes contribuiu para que o povo em geral não tenha uma idéia e uma impressão de que todos os advogados são como você: sem ética e sem compromisso? Quantas vezes se importou, realmente, com o direito de seu cliente e utilizou, não somente o seu tempo, mas sua inteligência e competência técnica para defender os direitos de seu cliente? Este ano, caro advogado, quantas vezes perguntou-se se tem ou não conhecimento suficiente, competência comunicacional adequada e “tempo” para advogar?

-Ei você promotor, quantas vezes lembrou-se este ano que faz parte do “Ministério Público”? Quantas vezes empenhou-se, dentro da sua competência funcional, com os casos que merecem dedicação, zelo, investigação, conhecimento? Quantas vezes foi promotor de “Justiça” e deixou de lado a vaidade e estupidez, a arrogância e impertinência, para simplesmente cumprir sua função pública?

-Ei você juiz, quantas vezes criou ambiente propício para a justiça? Quantas vezes usou da inteligência para pôr ordem nos cartórios e ofícios sob sua competência? Quantas vezes propôs para aqueles funcionários à sua disposição algum curso complementar, algum esclarecimento de “gestão”, alguma palestra sobre humanidades, a fim de que saibam estar tratando assuntos relacionados a pessoas e não a coisas? Quantas vezes, realmente, dedicou-se a pensar um caso, a aprofundar-se nele ainda, e a proferir uma sentença digna de um Magistrado, digna de um Juiz, digna de um Poder?

-Ei você, padre, pastor, bispo, missionário, apóstolo, pai-de-santo, ancião, ministro, médium, mulá, profeta, enfim, chefe religioso, quantas vezes ousou soprar a fumaça religiosa dos olhos de seus seguidores, para que eles e você pudessem ver D’us?

Quantas vezes ousou contestar as “cartilhas” dadas pelos seus superiores hierárquicos? Quantas vezes, realmente, foi honesto com sua “prédica”, deixando a “verdade” falar mais que a “vaidade”? Quantas vezes ousou contestar algum dos dogmas de sua religião? Quantas vezes pensou, com sinceridade absoluta, se sua religião não é mesmo o “ópio do povo” e que, com sua atuação, as pessoas se tornaram mais ignorantes, mais insensíveis, mais idólatras, mais materialistas, menos familiares, menos humanas? Quantas vezes ousou ensinar aos participantes de suas instituições que o lar deles, a casa deles e a família deles, vale mais que sua sede?

Quantas vezes ousou ensinar que as mulheres deveriam faltar aos encontros religiosos para fazerem amor com seus maridos?

Quantas vezes ousou ensinar a cada um deles que a vida vale muito, que não há céu nenhum, e que cada um colherá exatamente o que plantar? Quantas vezes ousou informar-lhes que sua “bênção” não vale quase nada pois cada um será singularmente como desejar e receberá o resultado do que plantar, pois uma semente é sempre uma semente?

-Ei você, rabino, quantas vezes abriu caminho para responder aos não-judeus acerca da Torá? Quantas vezes aceitou falar a um público sem conhecimento e sem prática judaica sobre o singular universo judaico?Quantas vezes olhou em torno de você para descobrir que há mais pessoas do que você imagina e, começar assim, uma revolução de pensamentos e idéias, de conceitos e realizações, cumprindo, simplesmente, seu papel no mundo?

-Ei você, você mesmo, o que fez de sincero e de concreto pela Educação, Justiça Social, Paz e pelo Direito? Ei você, o que fez de sonoro pela Ética? O que você fez para não jogar lixo nas ruas? O que você fez para lavar as próprias peças íntimas (comprou, ao menos, um sabão de côco?) O que você fez para não ser mais um canalha na rua, mais um assassino motorizado? Enfim, o que você fez para ser gente apenas?

E assim, diante disso, fossem as respostas satisfatórias, o interrogando poderia beber um pouco de vinho italiano, sorrir, abraçar os amigos e ser solenemente convidado a construir o ano novo (ainda que gregoriano!). Seria convidado, na sua função e papel social, a continuar sendo gente…

Mas, fosse insatisfatória, o interrogando seria condenado a beber espumante sulfuroso daquelas desprezíveis cestinhas natalícias, com goiabadinhas, sardinha e outras “prendas”… Seria condenado a ficar calado, longe dos seres humanos (sobretudo, das mulheres), impedido de destruir mais um período-tempo, impedido de perturbar as pessoas do mundo, impedido de ocupar espaços públicos.

E sujeito, ainda, a receber nove das dez pragas do Egito!

 

Nas Bênçãos do Eterno e na Luz do Mashiach

24 dicembre 2003 – 29 kislev 5764
(publicado no Campinas Café)
Postado no CafeTorah em 8 Kislev 5766

© copyright do autor

© Ms. J. Pietro B. Nardella Dellova, 43, Mestre em Direito pela USP (A Crise Sacrificial do Direito: um estudo de René Girard, Martin Buber e Yeshua). Mestre em Ciências da Religião pela PUC/SP (A Palavra Como Construção do Sagrado: um estudo da Poesia em Heidegger e Osman Lins). Pós-graduado em Direito Civil (Os Direitos da Personalidade). Pós-graduado em Literatura Brasileira (A Palavra Multifacetada: do grau zero e outros graus da palavra). Formado em Filosofia e em Direito. Poeta e Membro da União Brasileira de Escritores – UBE. Autor dos livros: AMO, NO PEITO e ADSUM. Ex-membro da Comissão de Bioética e Biodireito da OAB/SP. Darsham (predicatore) e Mestre (Rav) da Sinagoga Sêh HaElohim (originada da Sinagoga Scuola (Beit HaMidrash), Lazio, Itália). Membro ativo da Ordem dos Advogados do Brasil e da Associação dos Advogados de São Paulo. Consultor e Palestrista. Professor de Direito Civil, Ética e Filosofia do Direito em São Paulo. Coordenador dos Cursos de Direito da Faculdade de Jaguariúna e da Faculdade Policamp, em SP.

veja textos em:
www.cafetorah.com (páginas de judaismo messiânico e sabedoria judaica)

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www.faj.br/artigos.phpwww.policamp.edu.br/artigos.html

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