Se queres paz, prepara-te para a guerra
Si vis pacem, para bellum – Flavio Vegécio Renato, Século V
Nas últimas semanas observamos um conjunto de eventos que, tomados em conjunto, explicam por que analistas e públicos começam a usar com mais frequência a expressão “risco de escalada” — e por que alguns chegam a comparar o momento com os prelúdios das grandes guerras do século XX: movimentação acelerada da indústria militar, fornecimento de sistemas defensivos a aliados, incursões provocativas no espaço aéreo, retórica beligerante de líderes e mudanças político-eleitorais em países fronteiriços à esfera russa. Vamos examinar os fatos que sustentam essa preocupação.
Índice
Aumento da produção militar nos EUA
O Pentágono, pressionado por uma avaliação de que estoques de munição e mísseis não são suficientes diante de um conflito prolongado com um grande poder, tem tentado acelerar e expandir a produção de mísseis e outros sistemas críticos — com reuniões de alto nível entre governo e fabricantes e uso ampliado de instrumentos como a Defense Production Act para remover gargalos da cadeia produtiva. Isso reflete uma preparação industrial preventiva que acontece quando a percepção de risco estratégico aumenta.
Relevância: rearmamento em massa e aumento rápido da produção mostram que Estados e suas indústrias já contam com a possibilidade de combates prolongados; isso altera cálculos políticos e militares (menor margem para medidas graduais e maior prontidão para ações rápidas).
Retórica: “abater aviões” e ordens ambíguas
Em Nova York, durante encontros na Assembleia Geral da ONU, o presidente dos EUA declarou que apoia a ideia de que países da NATO “devem” abater aviões russos caso entrem em espaço aéreo aliado — posicionamento que vários porta-vozes aliaram a qualificação depois, mas que já circulou amplamente e foi repercutido pela imprensa. Esse tipo de enunciado tem dois efeitos imediatos: (a) eleva a pressão sobre comandantes militares que patrulham fronteiras aéreas; (b) aumenta o risco de um incidente que, por falha de identificação ou erro de cálculo, possa evoluir para combate direto.
Relevância: ordens ou incentivos públicos para o uso de força contra aeronaves de uma grande potência transformam incidentes aéreos isolados em possíveis gatilhos para confrontos diretos.
Incursões e testes de prontidão: a Russia provoca no ar
Relatos de múltiplas violações de espaço aéreo de países bálticos e do norte da Europa (por exemplo, incursões na Estônia e em áreas próximas) já motivaram alertas da NATO e consultas entre aliados. A aliança publicou declarações lembrando que usará “todos os meios, em conformidade com o direito internacional”, para defender seu território, enquanto Moscou responde com ameaças de retaliação a qualquer agressão. Esses episódios — que incluem voos de combatentes e aproximações perigosas — são vistos por muitos oficiais como testes de limites e de reação do bloco atlântico.
Relevância: incursões repetidas são tanto demonstração de capacidade quanto ferramenta de pressão; se um voo for abater por engano ou escalonar, a reação pode ser rápida e em cadeia.
Reforço de defesas na Europa — inclusive com tecnologia israelense
Paralelamente, houve uma intensificação no fornecimento e negociação de sistemas de defesa aérea e anti-drone para países europeus. Além das iniciativas americanas para fornecer baterias Patriot e NASAMS, empresas israelenses vêm firmando contratos e acordos para oferecer tecnologia de defesa contra drones e contramedidas eletrônicas para clientes europeus e navais. A combinação — mais interceptores, mais sistemas anti-UAS — reforça a proteção, mas também militariza o espaço europeu de modo visível.
Relevância: a blindagem defensiva reduz vulnerabilidades imediatas, mas cria também incentivos para um adversário testar meios alternativos (sistemas furtivos, saturação por drones, guerra eletrônica) e aumenta a percepção pública de que uma guerra abrangente é possível.
Política e geografia: eleições pró-ocidente em países estratégicos
A vitória recente de partidos pró-UE/pro-NATO na Moldávia (e a rejeição de forças pró-Moscou) altera o mapa político na fronteira ocidental da Rússia, preocupando Moscou e estimulando esforços de influência (desinformação, acusações, pressão por canais indiretos). Mudanças políticas desse tipo tendem a acirrar tensões regionais quando Moscou percebe perda de espaço de influência. AP News+1
Relevância: deslocamentos políticos em países satélites ou de influência podem ser vistos por potências revisionistas como ameaça direta e motivar ações de contenção, subversão ou demonstrações militares.
O padrão que lembra períodos anteriores: por que a analogia com as guerras mundiais aparece
Comentadores e alguns analistas recorrem a analogias com a I e II Guerras Mundiais por três motivos principais:
- multipolaridade e alianças rígidas: blocos com obrigações de defesa mútua (como a NATO) podem transformar um incidente local em conflito amplo;
- nacionalismos e revisionismo territorial: potências que buscam restaurar esferas de influência ou mudar fronteiras criam tensão geopolítica constante;
- tecnologia de destruição em massa: desde mísseis de longo alcance até capacitação de ataque cibernético e guerra eletrônica, o potencial de danos é maior e mais ágil do que no início do século XX.
É crucial entendermos as diferenças: hoje há mecanismos de dissuasão nuclear e canais de comunicação imediatos entre lideranças (apesar de tensões), e a interdependência econômica global é muito maior — fatores que, em tese, elevam o custo de um confronto total e podem conter decisões precipitadas. Mesmo assim, o cenário é extremamente preocupante em todo mundo.
Como a situação pode sair do controle?
Os pontos de maior risco prático, no curto e médio prazo, são:
- incidentes aéreos na Europa do Leste (identificação equivocada, interceptações mal coordenadas);
- ataques cibernéticos que prejudiquem sistemas de comando e controle em momentos críticos;
- confrontos por procuração (escalada em teatro secundário que arrasta aliados);
- mal-entendidos durante exercícios militares de grande escala.
As declarações públicas incentivando respostas militares mais duras (como a sugestão de derrubar aeronaves russas) diminuem a margem de manobra para reagir apenas com medidas não-letais e ampliam o risco de escalada imediata.
O que significa “estarmos próximos” — cenário provável vs. catástrofe
“Estar próximo” não significa que a terceira guerra mundial é inevitável amanhã. O que os acontecimentos mostram é um aumento da probabilidade de confrontos diretos localizados — e, simultaneamente, uma elevação do potencial para que um episódio isolado desencadeie ampliamentos em cadeia. Dois fatores que mitigam esse risco são: (1) o imperativo diplomático de evitar conflito nuclear; (2) o custo econômico e político massivo para todas as partes. Ainda assim, quando países se armam em massa, testam fronteiras e a retórica endurece, a estabilidade cai.
Conclusão
Os elementos factuais recentes — aceleração da produção de munições pelos EUA, disposição pública de alguns líderes em autorizar medidas de força contra intrusões aéreas, incursões russas em espaços aéreos aliados, reforços de defesa em países europeus (incluindo tecnologia israelense), e mudanças políticas em países fronteiriços — formam um quadro de crescente tensão e de maior risco de incidentes que podem desencadear uma escalada. As analogias históricas ajudam a compreender padrões, mas cada período tem seus mecanismos próprios de contenção e de aceleração.
Fontes principais
Cobertura das eleições moldavas pró-UE e implicações geopolíticas (AP, Washington Post, The Guardian). AP News+1
Reportagem sobre esforço do Pentágono e indústria para ampliar produção de mísseis (Wall Street Journal / Reuters sobre pressão para duplicar/quadruplar produção e uso do Defense Production Act). The Wall Street Journal+1
Cobertura das declarações do presidente dos EUA sobre abater aeronaves russas violando espaço da NATO (ABC News / Forbes / Newsweek). ABC News+1
Comunicados e reportagens sobre incursões aéreas russas na Europa e alertas da NATO (comunicado do Conselho do Atlântico Norte e matérias da Al Jazeera, Reuters e AP). NATO+2Al Jazeera+2
Notícias sobre fornecimentos e acordos de defesa (Patriot/NASAMS e contratos israelenses para contramedidas e sistemas anti-drones / contramedidas navais). U.S. Department of State+1