ALHEIRA, o toque judaico na culinária portuguesa

Por ROBERTO KEDOSHIM

Uma turista brasileira encheu os olhos quando viu uma linguiça vistosa, levemente amarelada, sendo servida num restaurante do Porto. Perguntou-me do que se tratava e eu lhe expliquei que era uma alheira, um prato típico da culinária portuguesa. A turista ficou ainda mais encantada quando que lhe contei, ligeiramente, a origem judaica da iguaria. Amiga de Israel, e amante de um bom enchido, não titubeou e pediu uma para si. Entretanto, na hora de comer eu notei um quê de decepção no ar. Não era bem o que ela esperava.

Quando um turista vê a alheira pela primeira vez, tem uma tendência a pensar que se trata de um embutido comum, uma linguiça. E uma linguiça, para ser boa, tem que ter muita carne. E carne é o que menos encontramos numa alheira. Muitos podem sentir-se engodados, mas é justamente no engodo que está o diferencial, pois a alheira surgiu exatamente para isso, para enganar.

A alheira percorreu um longo trajeto até chegar à mesa dos restaurantes do Porto. Um trajeto que começa com um casamento arranjado. No dia 30 de novembro de 1496, por uma questão de conveniência entre reinos, D. Manuel I de Portugal assinou um compromisso de casamento com Isabel de Aragão e Castela, da Espanha. O objetivo era fortalecer os reinos, mas Isabel, devota dedicada do Vaticano, incluiu no compromisso elementos que levaram o monarca português a assumir uma postura dura em relação aos não-praticantes do Catolicismo Romano, principalmente os judeus.

Aqueles foram tempos difíceis para os judeus da Espanha, pois a Inquisição Romana os perseguia e os matava indiscriminadamente. Restava aos descendentes de Abraão a fuga, sendo que neste caso o país mais acessível para o escape era Portugal.

A princípio, os judeus estabelecem-se nas cidades fronteiriças, sendo que um grande número deles acabou por ficar na região de Trás-os-Montes onde foram razoavelmente bem-recebidos pelos portugueses locais.

Mas a coexistência pacífica durou pouco, pois 1536, quatro décadas depois do casamento arranjado, Manuel I, pressionado pelo rei Dom João III, pediu ao Papa Leão X que instalasse um Tribunal do Santo Ofício também em Portugal. E o drama judaico recomeçou.

Além de receber denúncias sobre a atividade judaica na região, os inquisidores costumavam também visitar as casas das aldeias em busca de praticantes secretos da religião hebraica.

Como no resto do país, os portugueses transmontanos consumiam enchidos elaborados com carne de porco, mantendo as peças penduradas junto às lareiras. Ao adentrarem as residências, os funcionários da Inquisição observavam se havia os tais enchidos, e encontra-los era uma prova de que se tratava de uma casa católica. Como é do conhecimento geral, os judeus não comem carne de porco.

Depois de muitas prisões, a comunidade judaica local começou a perceber que a presença dos embutidos poderia lhes salvar a vida. E começaram a desenvolver uma artimanha para enganar os responsáveis pela Inquisição: elaborar um enchido falso, que pudesse enganar os investigadores.

Sem abrir mão dos preceitos judaicos, os judeus de Trás-os-Montes passaram a produzir uma linguiça feita á base de aves e caças, suplementadas com miolo de pão, temperos e alho, as quais deram o nome de alheira. E as alheiras produzidas em Mirandela acabaram por se tornar uma referência deste tipo de alimento.

Segundo o historiador judeu Paulo Scheffer, “para os judeus asquenazes, a alheira de Mirandela se parece muito com a kishke, uma linguiça kosher recheada com gordura, farinha de trigo, cebola e temperos, geralmente servida com o tcholent, um cozido de feijão típico das refeições judaicas do Shabat”.

Com o passar dos anos, o hábito de comer alheiras deixou de ser algo apenas dos judeus, conquistando gostos não só na sua região de origem como em todo Portugal. Hoje elas são encontradas nos cafés das cidades ou aldeias, nas praças de alimentação dos shoppings, no setor de embutidos dos supermercados e até mesmo em alguns restaurantes de luxo das grandes cidades.

Cada vez que uma alheira de Mirandela é servida em algum ponto de Portugal, é como se pudéssemos ver um judeu a saborear o fato de que a estratégia de sobrevivência do seu povo superou todas as artimanhas do inimigo e ainda conquistou paladares, até mesmo dos seus adversários.

DICAS DE COZIMENTO DA ALHEIRA

Um dos maiores problemas no preparo das alheiras é que elas se arrebentam com facilidade durante o processo de cozimento. O segredo para que isso não aconteça é não cortar o barbante que une as duas pontas do embutido e cozê-las em fogo brando. O melhor mesmo é assá-las na chapa ou então, melhor ainda, na brasa.

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