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Yom HaShoah – A Memória Sagrada
O Yom HaShoah VeHaGvurah, ou Dia da Lembrança do Holocausto e do Heroísmo, é uma das datas mais solenes do calendário israelense e judaico. Instituído em 1951 pelo Knesset (Parlamento de Israel), este dia é marcado anualmente no 27º dia do mês hebraico de Nissan, proximamente ao fim da Páscoa (Pessach) e antes do Dia da Independência de Israel (Yom HaAtzmaut). A escolha dessa data não é aleatória: ela conecta o sofrimento do povo judeu à sua redenção, da escravidão no Egito à ressurreição nacional em sua terra, após a maior tragédia da história judaica moderna – a Shoah, termo hebraico que significa “catástrofe” ou “aniquilação”.
Contexto Histórico: A Tragédia do Século XX
Durante a Segunda Guerra Mundial (1939–1945), o regime nazista de Adolf Hitler implementou o extermínio sistemático dos judeus europeus, uma política conhecida como a “Solução Final” (Endlösung). Com uma eficiência burocrática aterradora, cerca de seis milhões de judeus foram assassinados em guetos, campos de concentração e extermínio, como Auschwitz-Birkenau, Treblinka, Sobibor, Belzec, Majdanek e outros. Além dos judeus, também foram perseguidos e mortos milhões de ciganos, deficientes físicos e mentais, homossexuais, testemunhas de Jeová, opositores políticos e eslavos.
Entre os atos mais heroicos da resistência judaica está o Levantamento do Gueto de Varsóvia, iniciado em 19 de abril de 1943 – um símbolo de bravura que inspirou a escolha do período de Yom HaShoah. Embora mal armados, os jovens judeus resistiram à opressora máquina de guerra nazista, preferindo morrer em combate a serem levados passivamente para os campos da morte.
A Celebração em Israel: Memória Viva e Honra Solene
No Estado de Israel, o Yom HaShoah é vivido como um luto nacional, mas também como uma afirmação da continuidade e da resiliência do povo judeu. Às 10 horas da manhã, sirenes ecoam por todo o país, e por dois minutos toda a nação para. Carros, trens e pedestres cessam seus movimentos, em uma poderosa demonstração de unidade e reverência.
As cerimônias centrais são realizadas no Yad Vashem, o Memorial do Holocausto em Jerusalém, fundado em 1953. O evento é aberto pelo acendimento de seis tochas por sobreviventes, representando os seis milhões de judeus assassinados. Testemunhos são compartilhados, salmos são lidos, o toque do shofar em algumas cerimônias ecoa a dor e a fé milenar de Israel, e líderes proferem discursos comoventes. Nas escolas, sinagogas, bases militares e praças, repetem-se esses atos de memória.
A Perspectiva Bíblica: Lembrar é um Mandamento
Na tradição bíblica, lembrar (zachor) não é apenas um ato de memória passiva, mas um chamado à ação, à transmissão e à transformação. O verbo aparece repetidamente nas Escrituras:
“Lembra-te do que Amalec te fez no caminho, quando saías do Egito…”
(Deuteronômio 25:17)
A comparação entre Hitler e Amalec – o arqui-inimigo espiritual de Israel – é recorrente entre rabinos e estudiosos. Amalec é aquele que ataca os mais fracos e vulneráveis (Dt 25:18), exatamente como fizeram os nazistas. A Bíblia ordena não esquecer (lo tishkach) e apagar sua memória, não por vingança, mas como prevenção contra o mal.
O profeta Joel também clama:
“Dizei entre as nações: Preparai guerra… ajuntai os guerreiros… Despertai os valentes!”
(Joel 3:9)
Esse despertar, espiritual e nacional, é vivido no pós-Holocausto com a fundação do Estado de Israel, em 1948 – apenas três anos após a libertação dos campos de concentração.
A Teologia do Sofrimento e da Esperança
A questão do sofrimento do povo judeu ao longo da história, e especialmente no Holocausto, é uma das mais difíceis da teologia judaica e cristã. Alguns veem nisso um aparente “silêncio de Deus”, outros, uma provação extrema que revelou a profundidade da fé e do heroísmo, tanto dos que sobreviveram quanto dos que foram martirizados al kiddush HaShem – pela santificação do Nome de Deus.
O Salmo 44 expressa o clamor de um povo perplexo diante da aflição:
“Por tua causa somos entregues à morte continuamente; somos considerados como ovelhas para o matadouro.”
(Salmo 44:22)
O mesmo versículo é citado por Paulo em Romanos 8:36, mas ele continua:
“Mas em todas estas coisas somos mais do que vencedores, por aquele que nos amou.”
(Romanos 8:37)
O Yom HaShoah, então, não é apenas lamento. É também um grito de vida, um memorial da dignidade humana em meio à barbárie, e um clamor por justiça, verdade e reconciliação.
Lições para as Gerações Futuras
A educação sobre o Holocausto é pilar essencial do Yom HaShoah. Em Israel, o ensino é obrigatório desde os primeiros anos escolares. Viagens ao campo de Auschwitz e outros locais de memória, conhecidas como “Viagens da Vida”, são realizadas por jovens israelenses para confrontar a verdade histórica e consolidar o compromisso com “nunca mais” (Le’olam lo od).
A leitura dos nomes das vítimas, muitas vezes com idades, locais e circunstâncias da morte, devolve identidade às milhões de vozes silenciadas. É um eco do rolo de nomes em Êxodo 1:1 – “Estes são os nomes…”, que afirma a dignidade de cada indivíduo.
Conclusão: Guardar, Honrar, Ensinar
O Yom HaShoah transcende o passado. Ele é um alerta contra o antissemitismo, que infelizmente ainda assombra o mundo. É um apelo à consciência humana, um convite à vigilância moral. É um chamado à fidelidade – à verdade, à justiça, e ao pacto eterno entre Deus e Seu povo:
“Darei a eles um nome eterno, que nunca será apagado.”
(Isaías 56:5)
Assim, lembrar o Holocausto é afirmar a santidade da vida, a importância da memória e a esperança de redenção. Porque mesmo nas cinzas dos fornos de Auschwitz, a alma de Israel não foi destruída – ela vive, ressurge e floresce em cada nova geração que se recusa a esquecer.
Brasileiros Justos entre as Nações: Heróis do Holocausto
Durante os anos sombrios da Segunda Guerra Mundial, quando o regime nazista liderou o extermínio sistemático de milhões de judeus, alguns brasileiros se destacaram por sua coragem em desafiar ordens oficiais e salvar vidas. Dois deles foram reconhecidos pelo Yad Vashem – o memorial oficial de Israel às vítimas do Holocausto – com o título de “Justos entre as Nações”, concedido a não judeus que arriscaram tudo para proteger judeus da perseguição.
🇧🇷 Aracy de Carvalho Guimarães Rosa – “O Anjo de Hamburgo”
Quem foi:
Aracy nasceu em 1908, no Paraná. Filha de mãe alemã, passou parte da juventude na Alemanha, onde adquiriu fluência em vários idiomas – alemão, francês, inglês e português. Em 1936, assumiu o cargo de chefe da Seção de Passaportes no consulado brasileiro em Hamburgo, em plena ascensão do regime nazista.
O que fez:
Mesmo sob a vigência da Circular Secreta 1.127 de 1938 – uma norma oficial que proibia a concessão de vistos a judeus – Aracy optou por desobedecer às ordens. Ela emitiu dezenas de vistos omitindo a identificação religiosa dos solicitantes, permitindo que judeus fugissem para o Brasil. Além disso, ofereceu ajuda direta a famílias perseguidas, usando sua posição para facilitar suas saídas da Alemanha.
Vida após a guerra:
Durante seu período em Hamburgo, conheceu o diplomata e escritor João Guimarães Rosa, com quem se casou anos depois. Retornou ao Brasil durante a guerra e manteve-se discreta sobre suas ações heroicas. Viveu até os 102 anos, falecendo em 2011. Seu legado foi revelado ao público décadas depois e tornou-se inspiração para livros e séries.
🇧🇷 Luiz Martins de Souza Dantas – “O Schindler Brasileiro”
Quem foi:
Nascido em 1876, no Rio de Janeiro, Souza Dantas foi um diplomata respeitado, servindo como embaixador do Brasil na França entre 1922 e 1944. Quando os nazistas ocuparam a França, ele já era um diplomata veterano, conhecido por sua elegância e profundo senso de justiça.
O que fez:
Com a ocupação alemã e o avanço das políticas antissemitas na Europa, Souza Dantas começou a emitir vistos brasileiros a centenas de judeus, mesmo após receber ordens diretas do governo de Getúlio Vargas para cessar esse tipo de ajuda. Muitos desses vistos foram concedidos de forma clandestina, contrariando os regulamentos. Quando descoberto, foi investigado e ameaçado de punição, mas continuou com sua missão humanitária.
Vida após a guerra:
Após o fim da Segunda Guerra, permaneceu na Europa até sua morte em 1954, em Paris. Seu heroísmo foi por muito tempo pouco conhecido no Brasil. Décadas depois, pesquisadores revelaram seu papel essencial no salvamento de vidas, e ele passou a ser reconhecido como um dos grandes exemplos de compaixão e coragem diplomática da história brasileira. Sua trajetória foi contada em livros e documentários, destacando seu papel único em tempos de trevas.
Legado e Memória
Aracy de Carvalho e Luiz Martins de Souza Dantas demonstraram que a coragem individual pode resistir ao sistema mais opressor. Em um momento em que a maioria silenciava diante do mal, eles escolheram agir. O reconhecimento como Justos entre as Nações é mais do que uma honraria: é um lembrete de que a humanidade prevalece quando a compaixão se alia à ação.
Ambos os brasileiros representam o que há de mais nobre no espírito humano: a recusa em ser cúmplice do mal e a disposição de proteger o próximo, mesmo diante do risco pessoal. Seu exemplo permanece vivo, inspirando novas gerações a lutar contra o ódio, a intolerância e a indiferença.